MÍDIA & MENSALÃO
A imprensa seletiva
Por Washington Araujo em 02/08/2012 na edição 705
A imprensa brasileira pode ser acusada de tudo, menos de não ser
seletiva. O cardápio de notícias apresentado diariamente à sociedade
brasileira também pode ser recriminado por tudo, menos pela repetição do
prato principal. Refiro-me à Ação Penal 470, no linguajar jurídico, e
ao mensalão, no linguajar dos jornalões.
A depender da grande imprensa, o dia 2 de agosto de 2012 passa a ter
mais importância que o 7 de setembro de 1822 e, por isso, merece ser
eternizado em nosso calendário cívico como a verdadeira data da
independência do Brasil.
É aqui que começa a seletividade monocórdia, a opção desabrida pelo que
merece ser visto como o início de uma nova era para os brasileiros: a
imprensa julgou o assunto antes do Supremo Tribunal Federal e espera
deste nada menos que a sua validação. Exarada a sentença nos noticiários
das emissoras de rádio do Sistema Globo de Comunicação, proferida
repetidas vezes do alto da audiência de que desfruta em todo o país o Jornal Nacional,
da Rede Globo de Televisão, impressa em alto relevo em capas, páginas
coloridas e colunas de fofocas que pretendem tratar de política da
revista Veja, o carro-chefe – um tanto avariado, é verdade – da
Editora Abril, em tudo o foco é um só: a Ação Penal 470 só desembocará
em julgamento justo se dispensar o arcabouço jurídico a ser brandido
pelas diversas teses de defesa, e se desconsiderar os aspectos técnicos
mais comezinhos e indispensáveis a uma ação jurídica dessa envergadura.
Dois golpes
Desde os últimos dias de julho parecemos estar vivendo aquela última
semana de dezembro de todos os anos: retrospectivas para um só gosto.
Explico: a título de informar as pessoas sobre o julgamento do mensalão,
são pinçadas não mais que as cenas que demonizem os réus, marquem suas
frontes com ferro em brasa a insculpir a palavra “culpado”, imputem-lhes
todas as iniquidades não republicanas e expiem o Himalaia de atos
condenáveis que tão somente nossa legislação eleitoral poderia conter.
As retrospectivas do Jornal Nacional e da rádio CBN, ambos
veículos de grande audiência, pertencem à família Marinho. A mais
chamativa retrospectiva dos veículos impressos tem a chancela da Folha de S.Paulo,
pertencente à família Frias. E os mais variados “renascimentos” do
mensalão têm como sala de obstetrícia as redações da Editora Abril, de
propriedade dos Civita. É impressionante como o monopólio dos meios de
comunicação do Brasil é capaz de competir na batalha por corações e
mentes em condições de paridade com o Poder Judiciário e sua mais
elevada instância, o Supremo Tribunal Federal.
Chama a atenção como a parcialidade no noticiário pode ser nociva à
própria ideia de democracia. E como o pensamento único pode ser danoso,
além de cruel, à realização do ideal de justiça. E a AP-470 deve
merecer, em futuro não muito distante, alentadas teses acadêmicas sobre a
natureza e amplitude da influência que os meios de comunicação podem
ter em um país que se diz moderno e, no entanto, se comporta de maneira
partidarizada e sempre contundente graças ao elevado estado de
concentração e aos efeitos pernósticos de um monopólio cada vez mais
insustentável.
Enquanto isso, agentes do Direito, em especial do Ministério Público,
sentem-se insuflados pelos meios de comunicação a subverter o real
significado de eventos históricos de nossa tumultuada vida política.
Para ilustrar à perfeição, encontramos ampla repercussão na imprensa
dessa injuriosa frase à história do Brasil, proferida pelo
procurador-geral da República Roberto Gurgel: “O mensalão é o maior
escândalo da história do Brasil”. Será mesmo? Ou por trás de tão absurda
declaração não existe a vaidade escancarada de se sentir partícipe de
evento de tão grande magnitude?
Ainda bem que o ilustre procurador não é autor de livros didáticos de
história usados por estudantes do ensino fundamental; do contrário,
milhões de crianças e jovens aprenderiam que o processo em vias de
julgamento no STF eclipsou em importância nada menos que o escândalo de
1954, urdido por Carlos Lacerda (provavelmente o melhor aprendiz de
Nicolau Maquiavel da política brasileira recente) para derrubar Getúlio
Vargas e que, ao final, custou-lhe a vida, a eternização da expressão
“mar de lama” e a beleza poética da carta-testamento do presidente
suicida, certamente um dos mais importantes documentos políticos da
história do Brasil.
Considerar o mensalão “o maior escândalo da história” é transformar os
dois golpes de Estado ocorridos em 1955, ainda na esteira do suicídio de
Vargas, em não mais que tempestades em copo d’água.
Dever divino
Poderia aproveitar o gancho e discorrer por alguns outros episódios que
facilmente seriam impostos pelos fatos para ganhar a medalha de ouro, o
lugar máximo do pódio de nossas crises e escândalos políticos: a
chamada Intentona Comunista dos idos de 1935; o golpe militar que apeou
do poder o presidente João Goulart e instaurou uma ditadura cruel (nada
de “ditabranda”, como preferem alguns) que ceifou 20 anos da
vida brasileira, exilou intelectuais, podou a criação artística,
instaurou julgamentos sumaríssimos nos famigerados DOI-CODIs; e as
imagens ainda vívidas da esteira de escândalos que envolveram
personagens carimbados de nossa história recentíssima, como Fernando
Collor de Mello, Pedro Collor, PC Farias, os Jardins da Babilônia
recriados na Casa da Dinda, o Fiat Elba amarelo, a Operação Uruguay –
todos episódios que culminaram com o primeiro impeachmentde um
presidente do Brasil, legitimamente eleito e legitimamente destituído do
cargo.
Quer dizer, então, que nenhum desses eventos nefastos e seus terríveis
desdobramentos não passaram de meros exercícios mentais, meros esboços
de escândalos e crises políticas ante a AP-470? Sim, mas na abalizada
visão jurídica do procurador-geral da República Roberto Gurgel tudo isso
foi, vamos dizer, fichinha. A tese do senhor procurador-geral é por
demais impertinente e falseia a história como um todo – porque o que
falseia a parte, falseia o todo.
Nada contra o procurador-geral se equivocar. Nada mais natural, nada
mais humano. Mas não deixa de ser curioso observar que esse seu equívoco
de julgamento é realmente fichinha se comparado aos longos três anos
que Sua Excelência consumiu para se posicionar ante os robustos
resultados apresentados pelas operações da Polícia Federal de nomes
Vegas e Monte Carlo, e que culminaram na prisão do meliante-mor
Carlinhos Cachoeira, na cassação do mandato do senador Demóstenes
Torres, e que deve levar ao fio da navalha o mandato do governador
goiano Marconi Perillo, além de manchar reputações de personagens de
menor projeção política.
O problema é a forma entusiástica com que a grande imprensa encampou a
declaração do procurador-geral: repercutiu em primeiras páginas, foi à
escalada dos telejornais noturnos, recebeu o destaque que as frases
grandiloquentes costumam ganhar por parte dos ditos colunistas de
política. Mas não ficou por aí. Com essa frase sobre “o maior escândalo
da história” se turbinou na mídia uma nova fase do game “Detonando o
mensalão”: retrospectivas, operações Lázaro (aquela que ressuscita
mortos-vivos políticos) e se colocou, do cabo à lâmina, a faca nos
pescoços de nossos supremos julgadores, os integrantes do STF.
O poeta e filósofo romano Quinto Horácio Flaco (65 a.C.-8 d.C.) foi contundente quando afirmou: “Ousa saber! Começa!” (Sapere aude!)
E ousar saber e começar nada mais é que o irrecusável convite a que
saiamos da estagnação mental e partamos para o conhecimento das leis,
deixando ao largo todas as pressões – desde aquelas que gritam mais que
mil comícios do III Reich nazista até as que, ao amparo da liberdade de
imprensa, exercem seu divino dever de usar a liberdade de pressão para
fazer valer suas teses, ideologias e mesmo anseios tardios por vingança,
aquele velho prato que na literatura anglo-saxã sempre deveria ser
servido frio.
***
[Washington Araújo é jornalista e escritor; mantém o blog http://www.cidadaodomundo.org]
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