A criação de fatos às vésperas de pleitos decisivos não é
novidade: novo é que o Supremo Tribunal Federal seja aliado da ação da
mídia tradicional para influenciar o voto
Publicado em 02/10/2012, 14:10
Última atualização às 14:10
Farsa montada em 2010, amplamente divulgada pela mídia sobre
uma suposta agressão, foi revelada em filmagem do SBT como uma simples
bolinha de papel no então candidato José Serra (Foto: Reprodução/SBT)
Rio de Janeiro – Encarado por muitos críticos como algo mais do que
uma mera coincidência, o fato de o julgamento dos ex-dirigentes petistas
José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares ocorrer às vésperas das
eleições municipais fez crescerem em todo o Brasil as queixas quanto ao
suposto tratamento político dado ao caso pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) e pela mídia tradicional. Explorar um fato jornalístico com o
claro intuito de modificar um cenário não desejado nas urnas, no
entanto, não é prática nova das elites do país nem novidade na recente
história eleitoral brasileira.
Professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV),
Francisco Fonseca afirma que “a mídia no Brasil tem um longo histórico
partidário”, e que este se revela em dois sentidos: “A mídia
conservadora pode ser partidária de uma ideia. O exemplo das
privatizações foi muito claro nesse sentido, pois houve um consenso
forjado por parte da grande imprensa que deixou de lado, inclusive,
pessoas que sequer eram críticas à privatização, mas apenas ao seu
modelo. A mídia também tem grande tradição de ser partidária de
determinadas ideias que envolvem interesses do grande capital. Sobretudo
em épocas eleitorais, é partidária em relação a candidatos e partidos”.
A cobertura do julgamento do mensalão, segundo Fonseca, obedece a
essa tradição. Na primeira sessão desta semana, os ministros do STF
ratificaram a visão de que o crime se tratou de uma compra de votos de
parlamentares para obter apoio político – a tese da defesa dos réus é de
que houve caixa dois, crime reconhecido pelo ex-tesoureiro do PT,
Delúbio Soares. No mês de setembro, a revista Veja publicou
reportagem construída com base em supostos relatos de amigos e parentes
do publicitário Marcos Valério, tido como operador do esquema, falando
que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiba da existência do
crime. “O que nós estamos observando uma vez mais é uma oposição muito
forte de grande parte dos órgãos da mídia no Brasil em relação à figura
do ex-presidente Lula ou de uma figura de esquerda, seja ela qual for,
que surja como uma alternativa real de poder no Brasil”, lamenta
Fonseca.
A diferença desta vez, segundo o professor da FGV, é a presença de
uma instituição com o peso do Supremo Tribunal Federal: “O STF ao deixar
o julgamento de José Dirceu e do núcleo político para o final, às
vésperas da eleição, dá muito combustível à mídia em sua clara tentativa
de construir uma alternativa política e eleitoral para as próximas
eleições presidenciais. O Supremo se coloca como um agente que tem o
cronograma eleitoral na mão, e o relator do processo expressa uma
condenação prévia. Nesse contexto da vida política nacional, o STF se
coloca também praticamente de uma forma partidarizada, o que me parece
muito perigoso para a democracia institucional”. Quarta e quinta-feira
desta semana o relator da Ação Penal 470, Joaquim Barbosa, emite seu
voto sobre o chamado “núcleo político”, ou seja, Dirceu e Genoino. O
ex-ministro da Casa Civil teve a imagem utilizada pelo candidato do PSDB
à prefeitura de São Paulo, José Serra, na propaganda contra o
adversário Fernando Haddad (PT).
A história é longa
A série de tentativas de influenciar ou determinar o resultado das
eleições a partir da exploração de fatos criados ou amplificados pela
grande mídia começou em 1982, logo no início da retomada do processo
democrático, com o Caso Proconsult. Assim ficou conhecida a tentativa de
fraudar o pleito para o governo do Rio de Janeiro e impedir a vitória
do candidato do PDT, Leonel Brizola, que voltara havia pouco mais de
dois anos do exílio e era considerado persona non grata pelas elites
brasileiras.
Organizada pela Proconsult, empresa de informática ligada ao regime
militar, a fraude consistia em direcionar parte dos votos brancos e
nulos para o candidato Moreira Franco (PDS), principal adversário de
Brizola. Reproduzida como verdadeira nas manchetes de alguns dos
principais jornais do país, a apuração fraudulenta, que teve a suposta
“benção” do dono das Organizações Globo, Roberto Marinho, foi denunciada
pelo PDT e amplamente divulgada pelo concorrente Jornal do Brasil.
Brizola saiu vitorioso e renascido politicamente dessa disputa com as
forças conservadoras, mas esse não foi o resultado mais comum nos
enfrentamentos seguintes, quando a “vítima” já era o PT. O ensaio
ocorreu nas eleições de 1986, quando os candidatos do partido aos
governos estaduais foram, em maior ou menor grau, alvo de campanhas
depreciativas ou difamatórias que encontraram generoso eco na grande
mídia.
O caso mais notório foi o de Fernando Gabeira (coligação PT/PV) no
Rio de Janeiro, que além de ter seu passado de “terrorista”
permanentemente lembrado, foi “acusado” de homossexual e usuário de
drogas. Repercutido marotamente pela mídia, o anti-slogan “Quem fuma e
cheira, vota no Gabeira” colou naquelas eleições e hoje faz parte do
anedotário político nacional. O vencedor foi Moreira Franco, já no PMDB,
apoiado pelos principais veículos.
Naquele mesmo ano, Luiz Inácio Lula da Silva, eleito deputado federal
por São Paulo com a maior votação individual até então registrada na
história das eleições no Brasil, começou a provar do veneno oferecido
pela mídia, que o apresentava como ignorante, radical e inimigo do bom
uso da língua portuguesa. Mas foi em 1989 que a mão pesou contra Lula e o
PT com dois casos emblemáticos: o sequestro do empresário Abílio Diniz e
a “denúncia”, feita pela campanha de Fernando Collor (PRN), de que o
petista teria pedido à mãe de sua primeira filha para fazer um aborto.
Às vésperas do segundo turno entre Collor e Lula, o sequestro do dono
dos supermercados Pão de Açúcar mereceu intensa cobertura da mídia. Com
o crime desbaratado exatamente na véspera da eleição, foram divulgadas
por toda a grande imprensa as declarações do então delegado Romeu Tuma
dando conta de que os seqüestradores pertenciam a um grupo de
extrema-esquerda chileno e que com eles havia sido encontrado material
de propaganda política do PT. Alguns jornais chegaram a publicar na
primeira página: “PT sequestra Abílio Diniz”.
Se havia alguma chance de Lula vencer aquelas eleições, elas foram
sepultadas em uma única semana, quando também foi veiculado pela
campanha de Collor o depoimento da ex-mulher do petista falando sobre a
proposta de aborto. Na época, a declaração foi repetida e amplificada
pelos mesmos grandes veículos de mídia que, após o impeachment de
Collor, passaram a considerar execrável a exploração do caso. A já
famosa – e tendenciosa – edição feita pela TV Globo do último debate
entre os dois candidatos foi a cereja no bolo da mídia que, servido aos
eleitores brasileiros, afastou o fantasma da vitória de Lula naquela
ocasião.
Em 1992, a ampla divulgação de um suposto arrastão nas praias da zona
sul do Rio de Janeiro tirou uma vitória que parecia certa da candidata
do PT à Pprefeitura, Benedita da Silva. Na época, matérias publicadas
nos principais jornais do país lembravam que o arrastão acontecera na
praia do Leme, próxima à comunidade Chapéu-Mangueira, onde vivia
Benedita. Primeira colocada nas pesquisas, a petista acabou derrotada no
segundo turno por Cesar Maia (PMDB).
Da Lúnus à bolinha
Mais recentemente, outras tentativas de influenciar o resultado das
eleições a partir da amplificação de fatos na mídia ganharam
notoriedade. Em 2002, quando a candidatura de Roseana Sarney (PFL)
aparecia cada vez mais forte nas pesquisas para a Presidência da
República, uma operação da PF apreendeu R$ 1,3 milhão não contabilizados
nos cofres da empresa Lúnus, administrada por Jorge Murad, marido da
candidata pefelista. Amplamente divulgada pela mídia, a imagem da
montanha de dinheiro vivo apreendida sepultou as chances de Roseana, que
acabou retirando sua candidatura.
Fonseca avalia que a mídia é um ator político-ideológico muito claro.
“A grande mídia no Brasil é privada e tem interesses privatistas. Isso a
faz bastante conservadora. Os conflitos sociais no Brasil são
criminalizados, de um modo geral, por meio da mídia. A mídia, de alguma
maneira, está contra a democracia no Brasil”, diz, lembrando que Judith
Brito, dirigente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), declarou antes
das eleições de 2010 que a oposição política no país estaria sendo
realizada pelos órgãos da mídia.
Em 2006, na primeira eleição presidencial após o estouro do escândalo
do mensalão, o caso serviu de munição permanente à mídia conservadora
nas semanas que antecederam a votação. Mas, um episódio surgido nas
eleições de São Paulo – o caso dos “aloprados” – acabou sendo decisivo
para levar a disputa entre Lula e Geraldo Alckmin (PSDB) ao segundo
turno. Na ocasião, mereceu intensa repercussão na mídia a prisão de
pessoas ligadas ao PT após a suposta tentativa de compra de um falso
dossiê contra o candidato tucano ao governo paulista, José Serra. Após o
esvaziamento das primeiras versões apresentadas para o caso, Alckmin
acabou tendo no segundo turno uma votação inferior à que tivera no
primeiro turno.
Nas últimas eleições presidenciais, há dois anos, houve três
tentativas mal-sucedidas de reverter a ascensão da candidata do PT,
Dilma Rousseff, com a utilização de fatos amplamente explorados na mídia
conservadora. A mais importante delas foi a denúncia, publicada em
reportagem da revista Veja, de que um filho da então ministra da Casa
Civil, Erenice Guerra, estaria atuando como lobista junto a empresários
em Brasília para facilitar contratos com o governo. Erenice, que havia
sido secretária-executiva de Dilma na Casa Civil, foi afastada do cargo,
apesar de a principal fonte para a matéria da Veja ter desmentido a
revista. Mesmo tendo sua ligação com Erenice “analisada” à exaustão
pelos principais telejornais do país, Dilma venceu as eleições.
Outro episódio em 2010 ocorreu com a divulgação pela grande mídia da
tentativa de quebra do sigilo fiscal de Verônica Serra, filha de José
Serra, atribuída ao governo. O candidato tucano revelou sua “indignação
de pai” no Jornal Nacional da TV Globo, e o jornal O Estado de São Paulo
publicou a manchete “Serra acusa Dilma de usar filho dos outros para
ganhar eleição” ao lado de outra “Ministro admite investigação de crime
eleitoral em quebra de sigilo”. A quebra de sigilo a mando do governo,
no entanto, jamais foi comprovada.
Como último recurso em 2010, a grande mídia se valeu de uma suposta
bobina de fita que teria sido atirada “por petistas” na cabeça de José
Serra para divulgar com grande impacto a internação do candidato tucano,
que chegou a fazer uma tomografia, acompanhada com entradas ao vivo
feitas por algumas emissoras. Mais tarde, no entanto, filmagens feitas
por amadores – e até pelas lentes do SBT – no local do episódio
revelaram que o tucano, na verdade, havia sido atingido por uma
inofensiva bolinha de papel. Foi mais uma tentativa que não conseguiu
impedir a vitória de Dilma.
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