19/10/2011 17:04,
Por Redação, com IHU - de Washington
Estamos, pensa este professor da Universidade de Yale e personagem
assíduo dos Fóruns Sociais Mundiais, em meio a uma bifurcação, um
momento histórico único nos últimos 500 anos. Ao contrário do que
pensava Karl Marx, o sistema não sucumbirá num ato heróico. Desabará
sobre suas próprias contradições. Mas atenção: diferentemente de certos
críticos do filósofo alemão, Wallerstein não está sugerindo que as ações
humanas são irrelevantes.
Ao contrário: para ele, vivemos o momento preciso em que as ações
coletivas, e mesmo individuais, podem causar impactos decisivos sobre o
destino comum da humanidade e do planeta. Ou seja, nossas escolhas
realmente importam. “Quando o sistema está estável, é relativamente
determinista. Mas, quando passa por crise estrutural, o livre-arbítrio
torna-se importante.”
É no emblemático 1968, referência e inspiração de tantas iniciativas
contemporâneas, que Wallerstein situa o início da bifurcação. Lá teria
se quebrado “a ilusão liberal que governava o sistema-mundo”. Abertura
de um período em que o sistema hegemônico começa a declinar e o futuro
abre-se a rumos muito distintos, as revoltas daquele ano seriam, na
opinião do sociólogo, o fato mais potente do século passado –
superiores, por exemplo, à revolução soviética de 1917 ou a 1945, quando
os EUA emergiram com grande poder mundial.
As declarações foram colhidas no dia 4 de outubro pela jornalista
Sophie Shevardnadze, que conduz o programa Interview na emissora de
televisão russa RT. A transcrição e a tradução para o português são
iniciativas do sítio Outras Palavras, 15-10-2011.
Leia aqui a entrevista, na íntegra:
– Há exatamente dois anos, você disse ao RT que o colapso real da
economia ainda demoraria alguns anos. Esse colapso está acontecendo
agora?
– Não, ainda vai demorar um ano ou dois, mas está claro que essa quebra está chegando.
– Quem está em maiores apuros: Os Estados Unidos, a União Europeia ou o mundo todo?
– Na verdade, o mundo todo vive problemas. Os Estados Unidos e União
Europeia, claramente. Mas também acredito que os chamados países
emergentes, ou em desenvolvimento – Brasil, Índia, China – também
enfrentarão dificuldades. Não vejo ninguém em situação tranquila.
– Você está dizendo que o sistema financeiro está claramente quebrado. O que há de errado com o capitalismo contemporâneo?
– Essa é uma história muito longa. Na minha visão, o capitalismo
chegou ao fim da linha e já não pode sobreviver como sistema. A crise
estrutural que atravessamos começou há bastante tempo. Segundo meu ponto
de vista, por volta dos anos 1970 – e ainda vai durar mais uns 20, 30
ou 40 anos. Não é uma crise de um ano, ou de curta duração: é o grande
desabamento de um sistema. Estamos num momento de transição. Na verdade,
na luta política que acontece no mundo — que a maioria das pessoas se
recusa a reconhecer — não está em questão se o capitalismo sobreviverá
ou não, mas o que irá sucedê-lo. E é claro: podem existir duas pontos de
vista extremamente diferentes sobre o que deve tomar o lugar do
capitalismo.
– Qual a sua visão?
– Eu gostaria de um sistema relativamente mais democrático, mais
relativamente igualitário e moral. Essa é uma visão, nós nunca tivemos
isso na história do mundo – mas é possível. A outra visão é de um
sistema desigual, polarizado e explorador. O capitalismo já é assim, mas
pode advir um sistema muito pior que ele. É como vejo a luta política
que vivemos. Tecnicamente, significa é uma bifurcação de um sistema.
– Então, a bifurcação do sistema capitalista está diretamente ligada aos caos econômico?
– Sim, as raízes da crise são, de muitas maneiras, a incapacidade de
reproduzir o princípio básico do capitalismo, que é a acumulação
sistemática de capital. Esse é o ponto central do capitalismo como um
sistema, e funcionou perfeitamente bem por 500 anos. Foi um sistema
muito bem sucedido no que se propõe a fazer. Mas se desfez, como
acontece com todos os sistemas.
– Esses tremores econômicos, políticos e sociais são perigosos? Quais são os prós e contras?
– Se você pergunta se os tremores são perigosos para você e para mim,
então a resposta é sim, eles são extremamente perigosos para nós. Na
verdade, num dos livros que escrevi, chamei-os de “inferno na terra”. É
um período no qual quase tudo é relativamente imprevisível a curto prazo
– e as pessoas não podem conviver com o imprevisível a curto prazo.
Podemos nos ajustar ao imprevisível no longo prazo, mas não com a
incerteza sobre o que vai acontecer no dia seguinte ou no ano seguinte.
Você não sabe o que fazer, e é basicamente o que estamos vendo no mundo
da economia hoje. É uma paralisia, pois ninguém está investindo, já que
ninguém sabe se daqui a um ano ou dois vai ter esse dinheiro de volta.
Quem não tem certeza de que em três anos vai receber seu dinheiro, não
investe – mas não investir torna a situação ainda pior. As pessoas não
sentem que têm muitas opções, e estão certas, as opções são escassas.
– Então, estamos nesse processo de abalos, e não existem prós ou
contras, não temos opção, a não ser estar nesse processo. Você vê uma
saída?
– Sim! O que acontece numa bifurcação é que, em algum momento,
pendemos para um dos lados, e voltamos a uma situação relativamente
estável. Quando a crise acabar, estaremos em um novo sistema, que não
sabemos qual será. É uma situação muito otimista no sentido de que, na
situação em que nos encontramos, o que eu e você fizermos realmente
importa. Isso não acontece quando vivemos num sistema que funciona
perfeitamente bem. Nesse caso, investimos uma quantidade imensa de
energia e, no fim, tudo volta a ser o que era antes. Um pequeno exemplo.
Estamos na Rússia. Aqui aconteceu uma coisa chamada Revolução Russa, em
1917. Foi um enorme esforço social, um número incrível de pessoas
colocou muita energia nisso. Fizeram coisas incríveis, mas no final,
onde está a Rússia, em relação ao lugar que ocupava em 1917? Em muitos
aspectos, está de volta ao mesmo lugar, ou mudou muito pouco. A mesma
coisa poderia ser dita sobre a Revolução Francesa.
– O que isso diz sobre a importância das escolhas pessoais?
– A situação muda quando você está em uma crise estrutural. Se,
normalmente, muito esforço se traduz em pouca mudança, nessas situações
raras um pequeno esforço traz um conjunto enorme de mudanças – porque o
sistema, agora, está muito instável e volátil. Qualquer esforço leva a
uma ou outra direção. Às vezes, digo que essa é a “historização” da
velha distinção filosófica entre determinismo e livre-arbítrio. Quando o
sistema está relativamente estável, é relativamente determinista, com
pouco espaço para o livre-arbítrio. Mas, quando está instável, passando
por uma crise estrutural, o livre-arbítrio torna-se importante. As ações
de cada um realmente importam, de uma maneira que não se viu nos
últimos 500 anos. Esse é meu argumento básico.
– Você sempre apontou Karl Marx como uma de suas maiores
influências. Você acredita que ele ainda seja tão relevante no século
XXI?
– Bem, Karl Marx foi um grande pensador no século XIX. Ele teve todas
as virtudes, com suas ideias e percepções, e todas as limitações, por
ser um homem do século XIX. Uma de suas grandes limitações é que ele era
um economista clássico demais, e era determinista demais. Ele viu que
os sistemas tinham um fim, mas achou que esse fim se dava como resultado
de um processo de revolução. Eu estou sugerindo que o fim é reflexo de
contradições internas. Todos somos prisioneiros de nosso tempo, disso
não há dúvidas. Marx foi um prisioneiro do fato de ter sido um pensador
do século XIX; eu sou prisioneiro do fato de ser um pensador do século
XX.
– Do século 21, agora…
– É, mas eu nasci em 1930, eu vivi 70 anos no século XX, eu sinto que
sou um produto do século XX. Isso provavelmente se revela como
limitação no meu próprio pensamento.
– Quanto – e de que maneiras – esses dois séculos se diferem? Eles são realmente tão diferentes?
– Eu acredito que sim. Acredito que o ponto de virada deu-se por
volta de 1970. Primeiro, pela revolução mundial de 1968, que não foi um
evento sem importância. Na verdade, eu o considero o evento mais
significantes do século XX. Mais importante que a Revolução Russa e mais
importante que os Estados Unidos terem se tornado o poder hegemônico,
em 1945. Porque 1968 quebrou a ilusão liberal que governava o sistema
mundial e anunciou a bifurcação que viria. Vivemos, desde então, na
esteira de 1968, em todo o mundo.
– Você disse que vivemos a retomada de 68 desde que a revolução
aconteceu. As pessoas às vezes dizem que o mundo ficou mais valente nas
últimas duas décadas. O mundo ficou mais violento?
– Eu acho que as pessoas sentem um desconforto, embora ele talvez não
corresponda à realidade. Não há dúvidas de que as pessoas estavam
relativamente tranquilas quanto à violência em 1950 ou 1960. Hoje, elas
têm medo e, em muitos sentidos, têm o direito de sentir medo.
– Você acredita que, com todo o progresso tecnológico, e com o
fato de gostarmos de pensar que somos mais civilizados, não haverá mais
guerras? O que isso diz sobre a natureza humana?
– Significa que as pessoas estão prontas para serem violentas em
muitas circunstâncias. Somos mais civilizados? Eu não sei. Esse é um
conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o
não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os
bárbaros que tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os
bárbaros: os outros são bárbaros; nós, os civilizados.
– É isso que vemos hoje? O Ocidente tentando ensinar os bárbaros de todo o mundo?
– É o que vemos há 500 anos.
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